Afogando no raso
Abro o Instagram. O relatório digital de 2024 da Meltwater me diz que o Brasil está entre os países que mais utilizam redes sociais, 3 horas e 37 minutos por dia. 3 horas e 37 minutos. Mas abro o app do Instagram e um tsunami de vídeos de pessoas registrando sua própria vida inunda a tela do meu celular. Pessoas que moram no interior, mas são vaidosas, registrando sua ida até a cidade pra fazer as unhas; pessoas que querem a opinião do público para decidir se utilizarão a roupa A, B ou C; pessoas expondo partes bem selecionadas e produzidas daquilo que supomos, porque somos levados narrativamente a pensar, ser o cotidiano de suas vidas. O eu tornou-se um espetáculo.
A autoridade cultural tornou-se centrada na autoimagem, não porque tais influenciadores têm de fato realizações pessoais, mas pela estética da vida. Existir tornou-se uma vitrine. Mas não a existência cotidiana, rotineira, crua, a existência produzida pra engajar. E por que a existência instagramável do outro nos é tão relevante? Afinal, essas pessoas acumulam centenas de milhares de seguidores, que estão ali sempre pronto a defendê-los de eventuais ataques de haters, como se fossem agentes do sistema imunológico desses influenciadores, que os protege do vírus lesivo da crítica destrutiva daqueles que não fazem parte daquele sistema imunológico. Os defensores sentem-se íntimos. Íntimos da persona projetada na tela do seu celular.
Guy Debord em 1967 presenteou-nos com sua obra "A sociedade do Espetáculo" em que afirmava que construímos uma sociedade em que a representação da vida importava mais do que a vida em si, em que importa mais parecer, do que ter ou ser. Ele nos diz:
"O primeiro estágio da dominação da economia sobre a vida social levou à definição de toda realização humana como uma degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter para o parecer.”
Se em um primeiro estágio de construção social "ter" (a posse de coisas) era mais importante do que "ser" (vivência autêntica), no estágio posterior já não importava nem o ter, nem o ser, basta-nos "parecer". Penso que aqui títulos como "O golpista do Tinder" e "Inventando Anna" se aproximam. São pessoas que entenderam profundamente a lógica social e a aplicaram em seu benefício. Eles tornaram-se mundialmente famosos apenas pelo impacto lesivo objetivo de sua atuação nos outros, mas não fazem nada diferente das centenas de milhares de influenciadores que inventam-se em takes bem produzidos, iluminados e registrados com celulares Iphone de ultima geração Pro Max. E nós compramos. E talvez não sejamos lesados patrimonialmente de forma tão direta, mas somos corrompidos em algo muito mais profundo e relevante: a nossa própria vivência autentica. Engajamos, compramos, sustentamos e defendemos a sociedade do espatáculo.
“No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.” O real só nos serve, só nos é funcional, quando serve estéticamente ao parecer. Guy Debord publicou sua tese no ano de 1967, penso que ele se surpreenderia ao verificar em que grau nos dedicamos a maximizar esse processo. E nesse processo de seleção estética, passamos por uma precarização emocional sem precedentes. Não existe mais uma linha divisória entre o "ser" e o produto instagramável. A vida produzida tornou-se o próprio produto, a peça teatral se fundiu ao cotidiano. Como um ator que mergulha fundo na psique de um personagem pra conseguir encontrar dentro de si a complexidade da existência de uma persona, os influenciadores vão se despindo cotidianamente de uma vida genuína e se preenchendo desse personagem estético. Esvaziam-se de si, para tornarem-se desejos do desejo do outro. E investem a sua vida orientando-a ao outro; sua energia completamente voltada aos espectadores. E nós, espectadores, nos relacionando intimamente com uma personagem tão fantasiosa quanto a Malévola ou a Bela adormecida.
Não há profundidade. Há uma profusão de conteúdos rasos. Banalizamos a profundidade. E de tanto raso, tanto volume de rasos, vamos sendo inundados. Afogamo-nos no raso. E deixamos de aprender a desbravar o profundo.
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